ARTIGOS DE SEXUALIDADE - PARTE II - (17/02/03)

A AUSÊNCIA DE IDENTIFICAÇÃO FEMININA COM A "MULHER SEXUADA"
APARECE EM RELACIONAMENTOS DE LONGA DURAÇÃO.
Aprovado para publicação em 15.08.2001
Publicado na : Revista Brasileira de Sexualidade Humana. Vol. 13 , n° 1 : 15-19, 2002
Dra. Jaqueline Brendler - Vice-Presidente da SBRASH - 1999-2003
*Ginecologista com a qualificação para o exercício da terapia sexual. Vice-Presidente da Região Sul da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana -SBRASH.
** Membro da Comissão Nacional especializada em Sexologia da FEBRASGO. Coordenadora do Núcleo de Sexologia da SOGIRGS.


Resumo
No presente texto sugerimos que há inexistência da identificação com a "fêmea", com a "mulher erotizada", em mulheres que têm desejo sexual hipoativo. Propomos que, para essas mulheres, durante o período da paixão é difícil a percepção dessa falta de identificação que se torna cada vez mais aparente nos relacionamentos a longo prazo, quando o desejo sexual mais freqüentemente diminui.

Introdução

Homens e mulheres são educados ainda hoje de maneira muito diferente em relação à sexualidade. Contudo todos sabemos que no período da paixão o desejo sexual é muito intenso para ambos os sexos.

Ser homem significa "ser viril", ser "sexuado"? essa identificação primária masculina torna-se ausente nos relacionamentos duradouros ou não? Qual a identificação primária da mulher?

Em 2000 Rosemary Basson descreveu um alternativo modelo da resposta sexual feminina e propôs que "a resposta sexual começava com neutralidade sexual e o desejo sexual era mais um evento responsivo do que um evento espontâneo". Seu modelo enfatiza que algumas ou muitas experiências sexuais começam de um estado não sexual da mente, especialmente em relacionamentos de longo prazo. (1)

Propomos que um dos motivos pelos quais mulheres em relacionamentos de longo prazo têm menos "desejo sexual espontâneo" que mulheres apaixonadas é que não há em muitas dessas mulheres, a primária identificação com a "mulher sexuada" como ocorre com os homens. Será que, no período da paixão, as mulheres conseguem vencer a repressão sexual a que são submetidas desde a infância e, assim, mesmo não tendo a identificação da mulher sexuada internalizada, se permitem ter mais facilmente desejo sexual? Acreditamos que sim.

Discussão

Rosemary Basson propôs um modelo alternativo para a resposta sexual feminina no qual reconhece que a motivação sexual para ter experiência sexual surge do desejo de ter "ganhos" do tipo proximidade emocional, vinculação com o parceiro, compromisso, amor, afeição, aceitação, tolerância ás imperfeições do relacionamento, intimidade que não são sexuais mas que são mais importantes que o apetite, o desejo sexual ou a necessidade biológica de ter sexo. Esta autora acredita que a maioria das mulheres têm consciência da necessidade não sexual para ter sexo, pois inicialmente partem de um estado de neutralidade e, em função dos "ganhos", elas deliberadamente escolhem experenciar a estimulação sexual. Menciona que esses "ganhos" não são irrelevantes para os homens, mas que menos freqüentemente são uma força motivacional maior.

Basson relata que o modelo tradicional do ciclo da resposta sexual que é representado por desejo, excitação, orgasmo e resolução (Kaplan, 1979; Masters & Johnson, 1966) é freqüentemente relatado pelas mulheres no início de um novo relacionamento.

Já na situação de um relacionamento de longo prazo a resposta sexual feminina parece fazer diferentes caminhos. Algumas mulheres experienciam uma mudança dentro de um ano e outras, depois de poucos anos. A modificação freqüentemente é coincidente com o aumento das distrações e da fadiga associados com o ter filhos. Basson propõe o modelo alternativo de resposta sexual (1). Nesses relacionamentos monogâmicos a longo prazo, só ocasionalmente a mulher começa a experiência sexual com desejo sexual (necessidade sexual consciente, pensamentos sexuais, fantasias sexuais), movendo-se para a excitação, o orgasmo e a resolução (2). Diz que esse tipo de desejo sexual é mais referido conscientemente por homens jovens do que por mulheres (3).

A nova definição de desordem do desejo sexual hipoativo (HSDD) dada pelo comitê do consenso sobre disfunção sexual feminina foi ampliado e inclui a persistente ou recorrente falta de receptividade à atividade sexual (sozinha ou com parceiro) e a segunda importante inclusão é a necessidade dessa desordem resultar em angústia. (5) Basson, relatora do comitê do consenso, sugeriu subdividir o HSDD em IV subtipos (4).

Concordamos quanto à maioria das mulheres em relacionamentos a longo prazo terem menos desejo sexual espontâneo, do tipo fantasias, pensamentos ou necessidade consciente para ter sexo, contudo propomos que o motivo básico é a falta da identificação primária com a "mulher sexuada".

Em relacionamentos de longa data há muitos fatores diádicos que ajudam o desejo sexual a diminuir, como o desgaste da relação, a falta de sedução por parte do parte do parceiro(a), as mudanças físicas e a perda da atratividade do parceiro(a), a falta de um ambiente favorável, a de estimulação física adequada, o parceiro(a) não ser mais compatível com a fantasia sexual (Kaplan, 1995). Ainda não podemos deixar de mencionar que, com o aumento da idade do homem em função da morbidade induzida pela maior incidência de doenças (tipo diabetes, hipertensão arterial sistêmica...) e o uso de medicações, pode tornar-se sexualmente disfuncional. A mulher também pode adquirir alguma doença, ficar depressiva ou usar drogas. Todas essas situações pode ser causa de desejo sexual hipoativo.

Outro ponto a ser considerado em relação a falta da identificação primária com "a fêmea" é que os homens, estando sujeitos aos mesmos fatores diádicos e sendo sexualmente saudáveis, não apresentam desejo sexual fortemente diminuído em relações duradouras. Quais os motivos que fazem os homens terem mais desejo que as mulheres nesse tipo de relacionamento?

No período da paixão não há uma diferença tão importante em relação ao apetite sexual entre homens e mulheres. Fica difícil imaginar um homem que aceite viver sem sexo sem um significativo sofrimento, ao contrário do que observamos em nossa experiência clínica com mulheres. Parece que faz parte da identificação primária de todo homem ser homem, o que significa "ser viril", "ser sexuado". Os homens não foram somente educados para esse papel, foram impulsionados a ele. Essa identificação primária está impregnada no seu ser, não há como nega-la. É muito difícil pensar que um homem possa se desfazer-se dela (a identificação primária).

Sabemos que a formação da identidade sexual é complexa e que o seu conceito inclui a percepção que a pessoa tem de si quanto a ser homem ou mulher. A formação da identidade sexual inicia nos primeiros meses de vida e se estabelece até o segundo ano de vida. simplificando pode-se dizer que nas meninas ela se forma através da identificação com a figura materna ou outras figuras femininas significativas, mas também através da interação complementar com a figura paterna, que lhe dá a sensação de ser mulher em contraposição ao ser homem. O comportamento do pai em valorizar ou não a mãe no papel de mulher facilita ou dificulta a identificação da filha com a figura materna.

O mais comum é que desde o tempo que são meninas, a mulher identifica-se muito mais com o papel de mãe, que é muito mais valorizado do que com o papel de "mulher sexuada", oposto ao que acontece com os homens. Os pais não costumam dizer aos seus filhos que sexo é maravilhoso, que traz satisfação, aumenta auto-estima e proporciona maior união entre o casal. As meninas crescem ouvindo que sexo é pecado, sujeira, sofrimento. Elas repetidamente ouvem que sexo leva à gravidez e às DSTs. Todos esses sentimentos e medos tornam-se associados a sexualidade. Os meninos se permitem sentir prazer sexual mesmo na ausência do lado "nobre" da sexualidade. Eles se permitem mais serem transgressores dos papéis sexuais tradicionais. Os pais temem que suas filhas tenham uma iniciação sexual precoce e agem de modo a tentar adiar a sua vida sexual.

Qual o significado de ser mulher para a maioria das mulheres? Ser mãe, ser uma boa profissional?

No decorrer da vida as mulheres assumem vários papéis: o de filha, o de profissional, o de mãe e o de avó. Algumas mulheres, principalmente em relacionamentos a longo prazo, exercem os outros papéis sem terem "a mulher sexuada" internalizada e nesse tipo de situação as diferenças em relação à libido vão aparecer. Outras mulheres que têm essa identificação primária não apresentam queixas tão freqüentes em relação ao apetite sexual.

Outros fatores que contribuem parra que essa falta de identificação primária apareça nos relacionamentos a longo prazo é que muitas mulheres, hoje, acima de 35,40 anos que tiveram um único parceiro sexual vinculam a sua sexualidade à presença física do seu parceiro fixo, o marido. Durante o período da paixão, como o desejo sexual é muito aumentado, elas não percebem o quanto, somente na presença dele, conseguem se erotizar. Durante a paixão a falta de identificação com "a mulher sexuada" passa despercebida.com o tempo o único parceiro torna-se o agente desencadeador, promotor e mantenedor da sexualidade dela. Nos relacionamentos a longo prazo, a situação clínica acima mencionada pode ser detectada, quando a queixa é desejo sexual hipoativo feminino.

Proposta

Sugerimos que se pense sobre qual o significado atual de "ser mulher". Se o significado mais importante para a maioria das mulheres ainda se restringe a "ser mãe", a "ser uma competente profissional" e não a ser também 'uma mulher sexuada' talvez seja mais fácil entender por que em relações duradouras, as mulheres iniciam uma experiência sexual de um estado de neutralidade sexual.

Homens e mulheres são diferentes em muitos aspectos, isto inclui também o sexual. Será que os fatores biológicos como a conformidade cerebral e os níveis de testosterona são os mais significativos para explicar as diferentes percepções do sexo entre a mulher e o homem?

Por que muitas mulheres conscientemente admitem uma motivação não sexual por "ganhos" e em função deles, deliberadamente aceitam o estímulo sexual? Não poderá haver uma falta da identificação primária com "a mulher sexuada"? A falta dessa identificação pode ser atribuída à educação repressora que ensinou as meninas a perceberem sexo como algo repulsivo, negativo, feio e pecaminoso e hipervalorizar o papel de mãe e atualmente o papel profissional. Penso que as meninas são "programadas" para não terem a identificação de 'mulher sexuada' internalizada e apenas cumprem o seu destino.

Talvez o nosso papel como profissionais de saúde seja pensar sobre essa possibilidade, pois, se ela for aceitável, teremos que tratar os adultos para que percebam a sexualidade como algo maravilhoso e essencial para a felicidade humana, para que eles possam passar essa imagem positiva para as suas filhas mulheres de maneira que possa existir nelas também a identificação com a mulher sexuada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Basson, Rosemary . The female sexual response: a different model. Journal of Sex & Marital Therapy, 26: 51-65, 2000.

2. Basson, R. et all. Report of the international consencus development conference on female sexual dysfunction: definitions and classifications. The Journal of Urology, 163, 888-893, 2000.

3. Basson, Rosemary. Human sex-response cycles. Journal of Sex & Marital Therapy, 27: 33-43, 2001.

4. Basson, Rosemary. Are the complexities of women's sexual function reflected in the new consensus definitions of dysfunction? Journal of Sex & Marital Therapy, 27: 105-112, 2001.

5. Kaplan, Helen Singer. The Sexual Desire disorder - Dysfunctional Regulation of sexual motivation, 1995, Brunner/ Mazel, INC.

Aprovado para publicação em 15.08.2001
Publicado na : Revista Brasileira de Sexualidade Humana. Vol. 13 , n° 1 : 15-19, 2002.


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