O DIREITO A UMA VIDA SE XUAL LIVRE DE CONTRAIR DOENÇAS.
Dra. Jaqueline Brendler - Presidente da SBRASH - Consultório - Telefone: (51) 3228.0322
Publicado em:
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XI Jornada Amazonense de Ginecologia e obstetrícia . Manaus – AM
- FEMINA – Revista da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia. Vol. 29 N° 5, Junho 2001. Pág. 317 à 320
Autores:
César Pereira Lima *
Jaqueline Brendler **
Jussara Constança Simão ***
Rodrigo Pereira Lima ****
Sérgio Hofmeister de Almeida Martins-Costa *****
* Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre de Medicina da PUC/RS
** Comissão Nacional Especializada de Sexologia da FEBRASGO
*** Delegada Titular da Delegacia para a Mulher do Estado do Rio Grande do Sul
**** Psicólogo – Universidade Luterana do Brasil – ULBRA
***** Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Comissão de Mortalidade Materna FEBRASGO.
“ É a minha conclusão que no Ocidente se pensa muito no sexo e pouco nas mulheres” - Lin Yutang (1895-1976)
A importância de Viver
Direito a Uma Vida Sexual Livre de Contrair Doenças é o titulo do tema que me coube abordar neste importante encontro. Como a todo Direito corresponde um Dever, para dar um enfoque mais pertinente, preferiria o título – O Direito e o Dever a Uma Vida Sexual Livre de Doenças. Somente assim podemos tentar alcançar a equidade, já que o exercício pleno da sexualidade pressupõe, no mais das vezes, uma relação inter-pessoal.
Sexualidade é uma dos temas mais importantes, polêmicos e controversos da existência humana. Discuti-lo em seus diferentes aspectos para que se encontre um consenso é o mesmo que querer que todos processem o mesmo credo. Freud foi capaz de constatar o papel que a sexualidade desempenha em nossas vidas, como impulsos presentes nas emoções e em quase todas as ações humanas. Diferente dos animais, em que a fêmea com seus ferormônios é quem determina a convivência e o momento de acasalamento, a sexualidade em nossa espécie se manifesta nas mais diversas formas e é presença constante em nossas vidas.
Como se iniciaram as doenças transmitidas pela relação sexual ainda é uma incógnita e fruto de especulações
Uma antiga referência conhecida a respeito do exercício da sexualidade associada a perda da saúde, envolve o episódio bíblico entre Eva, Adão e o fruto Proibido. As doenças venéreas são conhecidas há milhares de anos. O termo venérea provém do latim, Vênus, Veneris, a deusa do amor. Publicações do antigo Egito, como o Papiro de Ebers ( 1550 A.C.), continham várias seções que abordavam as doenças da genitália feminina e os respectivos tratamentos.
Talvez a mais antiga citação direta de uma doença sexualmente transmissível que pode ter sido gonorréia – esteja citada na Bíblia, em Levítico 15 “Quando qualquer homem apresentar saída de secreção de seu membro, devido a isto ele é impuro”. Girolamo Fracastoro de Verona, que viveu entre 1483 e 1553, escreveu, em 1530, o poema Sífilis Sivi de Morbo Galico que deu o nome à enfermidade, e De Contagione, a observar a transmissão sexual da Sífilis, que recrusdeceu pelo retorno dos navegadores de Colombo do Novo Mundo. Por sua vez, Gabrielis Fallopius (1523 – 1562), recomendando o uso de preservativos de linho pelos homens, que assim não contraiam a sífilis, foi o primeiro a perceber e divulgar o alcance das medidas preventivas, um do século depois, usam-se preservativos de ceco de animais, e Madame de Sévigne, da corte francesa, em carta à filha, lhe recomenda o uso como “couraça contra o amor, gaze contra infecção”. No mesmo século XVII, o chinês Chung Szi-Sung no livro “A terapêutica secreta para o tratamento de doenças venéreas”, indica o uso de arsênico que, até a descoberta da penicilina, era o tratamento preconizado para sífilis, na forma de Salvarsan, sintetizado por Paul Erlich.
E sobre as leis sociais que versam sobre as moléstias de transmissão sexual?
No código Penal Brasileiro, que os médicos tão pouco conhecem, dentre outros delitos de periclitação da vida e da saúde, consta:
*Perigo de contágio venéreo
- No artigo 130 – expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:
- Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
- Parágrafo 1° - Se é intenção do agente transmitir a moléstia:
- Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
- Parágrafo 2° - Somente se procede mediante representação.
* Perigo de contágio de moléstia grave
- No artigo 131- Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir contágio:
- Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
E sobre a discriminação em relação à mulher?
Durante séculos, a mulher tem sido discriminada em todas as relações sociais, ocupando, no âmbito da sexualidade, uma posição biológica e sociologicamente fragilizada. Além disso, atitudes restritivas e “moralistas” contidas em todas as religiões em relação à sexualidade feminina, provavelmente tenham, em sua gênese, o fato do agente reprodutor da espécie ser dona de um corpo exuberante capaz de seduzir os homens. Homens que sempre tiveram a dúvida da paternidade e que, através da repressão imposta, conseguiram mantê-las dentro de uma vigilância e de um “molde” de comportamento “controlado”.
No Brasil, a discriminação à mulher permanece muito acentuada. De acordo com dados recentes do IBGE, apesar do índice de alfabetização já ser maior nas mulheres (95.1%) do que nos homens (90.6%), e a presença feminina nas universidades(10.5%) ser superior a dos homens (8.6%), o rendimento médio dos homens (1,9 salários mínimos) é maior do que das mulheres (1,5 salários), uma diferença, portanto, de 26,6%. Isto foi publicado junto às conclusões do Fórum Especial da Assembléia Geral da ONU, recentemente realizado no ano 2000, que demonstrou que as reivindicações femininas já não se limitam hoje a pontos como, o combate à exploração da mão–de–obra da mulher ou o combate à violência doméstica, mas se estendem ao domínio público, como o acesso aos postos de comando.
Como estão os direitos sexuais femininos no mundo?
A VI Conferência Mundial sobre a Mulher realizada em Beijing, na china, em 1995, declara que existe um controle limitado de muitas mulheres sobre sua vida sexual e que a falta de influência na tomada de decisões, são realidades sociais. Declara ainda, que as mulheres nem sempre tem o poder necessário para insistir em que se adotem práticas sexuais livres do risco de gravidez indesejada, ou adquirir moléstia infecto-contagiosas.
Nesta VI conferência, foi salientado que se deve dar prioridade aos programas que enfatizem a eliminação de práticas e atitudes nocivas, entre elas mutilação feminina, a violência contra a mulher, a exploração e a violência sexual, e reconhece que essas práticas constituem violações dos direitos humanos e dos princípios médicos éticos.
Ainda hoje há uma enorme distância entre o direito, o dever e a realidade mundial e brasileira, e diminuir estas distâncias, é um dos mais importantes desafios das sociedades de obstetrícia e ginecologia e da sociedade como um todo.
O que fazer para que um número cada vez maior de mulheres tenham uma vida sexual livre de doenças?
Como médicos, não temos interferência direta no desenvolvimento inicial da sexualidade, que se faz dentro da família. Contudo sabemos, o quanto uma visão negativa de sexualidade, em especial da sexualidade feminina, pode ser passada às criança. Nelas, os valores que se tornam internalizados sobre a sexualidade da mulher, são comumente repressivos e associados mais ao pecado, à sujeira, à dor, e ao sofrimento, do que à virtude, à saúde e ao prazer. Isso explica a imensa dificuldade existente em lidar com o corpo e com a sexualidade.
Como transformar esse aspecto negativo em um vínculo saudável?
A formalização curricular escolar de aulas sobre sexualidade só será profícua, quando feita na forma de uma educação humana geral livre de preconceitos e ligada às práticas de saúde preventiva.
Ainda devemos levar em conta que “O direito e o dever a uma vida sexual livre de doenças” só será possível a uma mulher que tenha boa auto-estima, que conheça seu valor, que lute por seus direitos e que, principalmente, respeite a si mesma.
Infelizmente as moléstias de transmissão sexual cursam com poucos ou nenhum sinal ou sintonia, mormente em seu período de incubação, onde a transmissão igualmente ocorre. Exceptuando-se o herpes genital, o cancro mole, o primário da lues, ou as excrescências de alguns tipos de Papiloma vírus e as inespecíficas adenopatias provocadas pelo linfogranuloma venéreo, a maioria das moléstias de transmissão sexual têm manifestação clínica frusta. O que dizer da contaminação pelos vírus das Hepatites B e C e da síndrome de Imunodeficiência Adquirida, a temível SIDA ou AIDS? Estimava-se, que no final de 1999, existissem 33,4 milhões de contaminados no mundo (o Programa das Nações Unidas para AIDS (UNAIDS), divulgado em Genebra no dia 27 de junho de 2000 passado, revela que há 34,5 milhões de pessoas infectadas), sendo 22,5 milhões na África, onde35 a 45% de todas as gestantes na África Meridional portavam o vírus. Acredito que um dos fatores mais significativos e importantes de sua disseminação e de seu caráter endêmico esteja associado à desinformação e a esta pobreza de sinais e de sintomas. Outro fator muito importante, é a tendência do ser humano a praticar a variação de parceiro sexual. Essa inclinação a Ter mais de um parceiro sexual ao mesmo tempo, está descrita existir na maioria dos animais, como bem abordado na obra A Anatomia do Amor, da antropóloga Helen Fisher. Nesse livro, as comparações, as semelhanças e as diferenças com outras espécies ficam bem claras. Somos animais, mas em algum momento de nossa história e de nossa evolução, a sexualidade feminina se fez contínua - estava criado o sexo por prazer, o sexo como demonstração da afetividade. Com esta sexualidade contínua, não mais norteada exclusivamente com fins procriativos, a prática tornou-se mais constante, recreativa e até mesmo passou a ser uma forma de ganhar a vida profissionalmente. E voltamos nós...a variação sexual e a promiscuidade, fatos intimamente ligados à disseminação de doenças ligadas à prática sexual.
São as doenças de transmissão sexual um problema médico-sanitário ou uma questão ética e moral?
Para os médicos, as moléstias de transmissão sexual devem ser vistas sempre como um problema médico-sanitário, uma vez que ao médico não cabe estabelecer juízos de valor moral sobre as atitudesdos seus pacientes. A sua função é o esclarecimento, a promoção e proteção da saúde da profilaxia pelo estímulo ao suo de preservativos, masculinos ou femininos, e da cura.
A consciência da relação entre o ato sexual e a procriação surgiu com a fixação do homem na terra. Foi a criação de animais que levou o homem a suspeitar e entender esta relação, não na forma como conhecemos hoje, pois até o advento do microscópio, os homúnculos presentes no sêmen humano eram tidos como os únicos responsáveis pela origem da vida, uma vez que implantados no útero feminino.
Com o advento dos anticoncepcionais orais, em 1959, as mulheres passaram a praticar sua sexualidade com mais segurança. Segurança de não mais carregar o produto destas relações. Adquiriram o Direito de Ter Uma Vida Sexual Livre de Concepções Indesejadas, fato dependente agora apenas de um ato volutivo. A síntese dos esteróides bloqueadores da ovulação foi a grande revolução sexual do universo feminino. Paradoxalmente, a diminuição do risco da gestação indesejada veio acompanhada do aumento do risco das doenças de transmissão sexual, devido a queda das restrições que a maternidade involuntária determinava.
O Japão onde, até recentemente, os anticoncepcionais orais ainda não estavam liberados, tem no preservativo masculino principal método anticoncepcional. Como conseqüência, apresenta, ainda hoje, uma das menores taxas de doenças de transmissão sexual.
Um outro fato importante é o papel que representa a sexualidade humana como apelo à venda de bens de consumo em nossa sociedade. Qualquer produto que se queira aumentar a venda, utiliza-se de modelos ou de artistas, com atributos físicos que todos gostariam de ter. A erotização do comércio, trouxe à reboque a banalização da sexualidade, tendo como conseqüência uma diminuição da responsabilidade individual e dos cuidados para com sua prática. Na mídia, pratica-se o sexo como um ato sem conseqüências, sem risco de gestação ou de transmissão de enfermidades. O sexo idealizado, descompromissado e de prazer máximo. Em outras palavras, o sexo da utopia.
E como podemos atuar de um modo direito sobre o comportamento sexual para proteger as pessoas das moléstias de transmissão sexual?
O sexo não pode ser “a imagem da doença”. O sexo deve estar vinculado ao prazer, à responsabilidade e ao afeto entre as pessoas. Conviver com a realidade das doenças, e procurar minimizar e restringir seus efeitos, parece ser o caminho árduo a ser percorrido. Mas imaginar como real e absoluta a prática sexual sem doenças, mesmo com o estímulo maciço ao uso de preservativos, é o mesmo que tornar real a vida em sociedade urbana sem o risco de contrair gripe, ou a vida em uma selva tropical sem o risco da malária.
A busca maior do ser humano é a busca do AMOR e nós, médicos, não podemos deixar que a associação de SEXO e DOENÇA condene homens e mulheres a uma vida sem dignidade, plena de sofrimentos e com elos afetivos fragilizados. |